Quem gosta de música e já parou para imaginar como seria uma colaboração musical entre Amy Winehouse, Bette Midler, Billie Holiday e RuPaul, pode ficar completamente tranquilo porque seu momento chegou agora mesmo:
“Eu como picles direto do frasco. Eu faço palavras-cruzadas na caneta. Eu canto alto, longo, notas altas para viver. Nativa bostoniana, torontoniana casual. Esclarecido?”.
Assim Leah Allyce Canali apresenta-se em sua conta no Twitter. Cantora e compositora natural de Boston, Massachusetts, mas radicada desde 2009 em Toronto, no Canadá, ela é o que podemos definir como “artista drag friendly”, devido a suas colaborações musicais com drags cantoras.
A mais recente delas é “Gettin’ It Done”, primeiro single de BOA, – season um de Canada’s Drag Race -, lançado em 25 de dezembro de 2020. Composto por Leah em parceria com Kevin Howley e Stacey Kay, é a sua segunda investida na drag music. A primeira delas, que me fez querer escrever este texto que você lê, eu te conto qual é no próximo parágrafo.
Um dia, ao atualizar meu Spotify, encontrei a faixa “Iconic (Drag Reveal Session)”, feita por Leah com Kevin Wong e disponível desde 20 de agosto do ano passado. Esta música fora relançada com uma introdução especial feita por, veja só, aquela que, quando ela está no palco, você a conhece: Tynomi Banks, outra estrela da versão canadense do Drag Race.
Depois de escutar “Iconic” diversas vezes, pude conhecer o restante do trabalho de Leah. No já citado Spotify ela disponibiliza outros seis singles, entre eles, canções autorais e versões. Ao que tudo indica, em breve vem um álbum por aí, além de outros projetos.
Nada mau para quem, em 2020, cantou, em uma transmissão ao vivo de sua cidade natal, para Barack Obama, em Washington, durante sua posse como presidente dos Estados Unidos. Agora que você já está devidamente ambientado, lhe convido para ler, na íntegra, logo abaixo, minha entrevista com Leah Allyce Canali. Confira:
Seu primeiro single disponível no Spotify é uma versão de Sissy That Walk, de ninguém menos do que RuPaul. Com você esta música foi desconstruída e ganhou um ar sexy. Como foi isto? RuPaul conhece esta versão?
Sissy That Walk, a música que continua dando! Então, eu me apaixonei por essa música assim que eu a ouvi. Sou fã da RuPaul desde o show original da RuPaul (sim, o dos anos 90), mas essa música realmente me atingiu como uma que eu poderia traduzir muito bem em uma faixa despojada, mais instrumental. Eu tinha meu registro de banda e a sorte de filmar algumas imagens incríveis em um baile em Toronto para o vídeo que chamou a atenção da própria Mãe Ru! Eu já encontrei RuPaul várias vezes e ele tem sido tão caloroso e solidário. Ele compartilhou esse vídeo tantas vezes que eu não sei nem contar e desde então passou a compartilhar muito do meu trabalho, até mesmo meus originais. Eu credito a ele a capacidade de seguir em frente na minha carreira e realmente focar na minha própria música. Eu sempre brinco que ele lançou a carreira de centenas de drag queens e uma vocalista muito humilde.
“Iconic” foi relançada com uma introdução especial feita por Tynomi Banks. O que lhe fez chamá-la para esta música? Como foi a gravação?
Iconic é minha homenagem a todas às rainhas maravilhosas da minha vida e ao longo da história da minha carreira que me ajudaram a crescer na artista que sou hoje, mas verdade seja dita, é em grande parte sobre Tynomi. Há uma energia que ela traz para uma performance que é tão elétrica, tão interessante, então eu sabia que tinha que colocar isso em uma música. Felizmente, consegui pegar Tynomi para gravar sua parte antes dela partir para as filmagens de Canada’s Drag Race. Passamos um dia no estúdio e eu a entrevistei sobre drag, sua vida, sua história com performance e o que a torna exclusivamente Tynomi. Tenho quase uma hora de áudio incrível dela. Espero usar mais dele em lançamentos futuros!
Quais são os seus versos preferidos de Iconic?
Eu realmente gosto da ponte de Iconic. Eu não vou mentir, essa música é difícil de cantar! A ponte fica no alto do meu alcance vocal para o máximo impacto e também para que eu possa usar tons de apito à la Mariah ou Ariana, eu realmente gosto. Raramente posso usar tons de apito na maioria dos cantos que eu faço, então, quando eu posso usar eles eu sempre acho super divertido! Eu também gosto muito do refrão de Iconic. Diz exatamente o que quero dizer a todas às rainhas da minha vida! Vocês são ícones, lendárias em todos os sentidos! Na introdução da Tynomi eu realmente amo quando ela diz que “não leva besteira” porque é assim que eu sempre soube que ela era. Ela é uma estrela em todos os sentidos da palavra. Ela não olha para trás ou para os lados, só para a frente. Eu me esforço para ter um pouco dessa ferocidade em minha própria vida e carreira. Eu também adoro quando ela fala sobre fazer drag como um respeito às mulheres. Se você já viu Tynomi se apresentar, sabe que ela incorpora essa ideia em todas as suas performances. Ela nunca faz nada no meio do caminho e eu acho que para homenagear as artistas femininas que Tynomi homenageia, você tem que colocar esse tipo de dedicação total dentro. É super inspirador.
Se você pudesse criar um grupo pop de garotas formado por drag queens, quem seriam as escolhidas e por qual motivo?
Oh, ótima pergunta. Presumo que estamos falando de garotas do Drag Race?
Sim e não, mas vamos começar pelas Rugirls.
Porque há um monte de rainhas “locais” ferozes que eu usaria para isso também, mas se estamos falando de rainhas que estiveram no show:
Trixie – Eu já me apresentei com ela uma vez e ela realmente é uma musicista incrível. Você precisa de uma grande compositora em um grupo como esse e ela tem aquelas costeletas e mais um pouco!
Jujubee – Sem dúvida uma das melhores vocalistas saídas de Drag Race e apenas uma artista e personalidade incrível.
Shea Couleé – Porque todo grupo feminino precisa de uma dançarina feroz e ela dá tanto no palco.
Priyanka – Vencedora de Canada’s Drag Race. Eu amo a ideia de uma rainha canadense na mistura e Pri é como todos os membros do Little Mix reunidos em um único artista e ela é ótima com um microfone!
Nem preciso dizer que já quero o primeiro single deste grupo.
Se estamos falando de garotas que não são de RuPaul’s Drag Race eu teria que adicionar Fena Barbitall, que é outra grande inspiração para a minha música Iconic. Eu literalmente nunca vi ninguém dublar como Fena, ela é hipnotizante. Além disso, se você é fã do UNHHHH, então você sabe que a Fena pode estilizar qualquer peruca.
Seu envolvimento com a comunidade drag é interessante de destacar. Como é sua relação com a drag music? O que te atrai neste estilo de música?
Sou apaixonada pela cultura, arte e música de drag há algum tempo. Quando eu tinha 20 anos eu morava com rainhas (grite para Mohogany Brown, Landa Plenty & Lisa Newcar) e elas me apresentaram a este mundo todo inspirador. Há algo sobre drags performers, a essência que elas trazem para um palco, que eu acho completamente convincente. Embora eu não seja uma artista drag, eu acho que as divas vocalistas e artistas drag muitas vezes encontram um parentesco umas com as outras. No final do dia, uma música “drag” é, geralmente, um hino feminino realmente empoderador e eu me conecto com isso em muitos níveis, tanto como artista quanto como mulher.
O que são aqueles violinos em Just a Girl? E as notas altas que você alcança? Não consigo parar de ouvir. Quando você se lembra do dia da gravação desta música, qual é a primeira lembrança que vem a sua mente?
É tão engraçado. O dia em que gravei essa música foi um pouco difícil. Eu tinha dormido tarde na noite anterior e estava me sentindo um pouco indisposta, mas eu sabia que eu tinha a sessão reservada e eu não poderia remarcar. Eu realmente acho que a maneira como eu estava me sentindo ajudou a trazer sentimento e uma emoção sombria para a peça que eu estava procurando. Essa música sempre me pareceu tão empoderadora e eu realmente queria mudar a sensação do original para lucrar totalmente com a emoção da música. A parte do violino foi feita pela minha amiga Maya Killtron (que é outra artista estelar que você deve conferir… ela canta, escreve, toca violino!). Ela entrou e arrasou com essa parte. Eu continuei ouvindo na minha cabeça e quando Maya tocou, o arranjo ganhou vida.
Ao conhecer seu trabalho, notei uma veia autoral muito forte, mesmo quando você canta músicas que já foram gravadas antes. O que te faz querer reinterpretar uma música?
Alguém me disse uma vez que, você sabe se uma música é boa se você pode tirar todos os sinos e assobios e tocar ela em um violão e ainda ter uma ótima música. Eu adoro quando as faixas de clube podem ser reduzidas a apenas seus ossos e ainda assim serem músicas incríveis. Minha formação como vocalista começou no teatro musical e jazz, então eu realmente amo interpretar uma música não só por seu conteúdo musical, mas também por seu núcleo emocional. Eu acho que quando eu dispo um monte de elementos de produção eletrônica da música, se torna mais sobre apenas conectar o sentimento da peça, ouvir a letra e a melodia e a história que elas têm a dizer. Toda música tem uma história e cabe ao vocalista interpretar essa história.
Aqui no Brasil, assim como aconteceu recente nos Estados Unidos, somos governados por um presidente fascista chamado Jair Bolsonaro. Neste momento ruim para ser LGBTQIA+ por aqui, que mensagem você gostaria de enviar para a comunidade?
Bolsonaro, como Trump, realmente se aproveitou da parte mais profunda e odiosa de nossas comunidades. Acredito que as pessoas que seguem esses déspotas egoístas o fazem por medo. Elas temem o crescimento, temem o que percebem como diferente e temem a mudança. Estes homens aproveitam esse medo básico e o exploram. Embora não possamos descartar o fato de que essas pessoas estão entre nós, acredito que também há uma vida profunda, poderosa, que faz o bem acontecer. Candidatos políticos LGBTQI+ globalmente estão se formando em estradas e vencendo eleições-chave. Se usarmos os EUA como exemplo, números recordes de jovens, cidadãos queer e POC e seus aliados apareceram para votar contra o ódio, para votar em pessoas que representarão nossos ideais e trabalharão para garantir que os Trumps e os Bolsonaros no mundo estejam vendo sua última posição. Minha mensagem para a comunidade LGBTQIA+ é que eu te amo, você é linda e perfeita do jeito que você é e outros e eu lutarão por você. Acreditamos em você e lutaremos para garantir que você receba e mantenha direitos iguais. Também prometo continuar aprendendo, continuar ouvindo e crescer ao lado da comunidade LGBTQIA+. O dia em que você para de aprender ou fecha sua mente para novas ideias ou seus ouvidos para as necessidades dos outros é o dia em que você deixa de ser um aliado.
Quais são as três canções da Amy Winehouse que, quando você escuta, pensa: “Uau, gostaria de ter composto essas?”.
Ah, todas elas! Minha música número um, “eu queria ter escrito isso” da Amy, tem que ser “Love is a Losing Game”. Esta é uma das melhores canções já escritas. De olhos fechados. Queria ter pensado nisso primeiro!
“Back to Black” está lá em cima para mim também. O sentimento assombroso da melodia desta música é algo que você não consegue em todas as músicas. Você sente o que ela estava passando e sente isso junto com ela toda vez que ouve. É quase como uma procissão fúnebre ganhando vida e quero dizer isso da melhor maneira possível. Parte seu coração da melhor maneira. E a terceira, eu diria, “Fuck Me Pumps”. Essa música é tão genial. Literalmente toda mulher e rainha que conheço tem um par de salto alto sexy estilo “venha me foder” no armário dela agora. É um conceito brilhante para uma música e também é super divertido cantar!
(Menção honrosa tem que ir para Rehab porque ela mudou o jogo com esta música. É cru, é honesto e cativante como o inferno. Brilho puro.)
Kevin Wong e Don Campbell são alguns dos compositores que trabalham com você. O que te atrai ao ponto de escrever músicas com eles?
Kevin Wong é um dos maiores compositores que já conheci. Eu brinco que ele deveria escrever um álbum chamado “Tears” porque eu choro toda vez que ouço uma nova música dele. Ele tem essa habilidade inata de explorar as emoções mais profundas que uma pessoa tem e lindamente, embora tanto letras quanto composições tragam essas emoções à vida na canção. Eu amo trabalhar com ele por essa razão e também porque eu posso ir até ele e literalmente dizer: “Ok, nós vamos escrever uma música que é pura vibe Mariah anos 90” e ele imediatamente sabe o que eu estou falando e entrega. Ele também é um tumulto. Eu rio tanto em nossa sessão. Don, além de ser o homem mais bonito de toda a terra, é um humano tão quente, aberto e que dá humanidade quando se trata de coescrever. Eu tenho um monte de inseguranças e “síndrome do impostor” quando se trata da minha habilidade de escrever e Don é capaz de deixar tudo isso de lado. Ele fica muito animado quando as músicas começam a tomar forma e essa excitação é contagiante. Faz você se sentir como se estivesse no caminho certo e normalmente está. Escrevemos Wasted em uma tarde, em cerca de 3 horas ela voou para fora de nós. Don tem a habilidade única de abrir uma porta de composição em mim que eu muitas vezes deixo fechada.
“Wasted” me dá muita temperatura de Joss Stone, sabe? Quais são seus cantores de soul favoritos?
Muito obrigada! Estou tão feliz que você tenha esse sabor desta faixa! Joss Stone é uma das minhas favoritas de todos os tempos e me disseram algumas vezes que eu pareço com ela, o que sempre me surpreende porque eu amo a voz dela. Outras vozes soul que eu amo: Amy (claro), Leela James, Adele, Jill Scott, Lauryn Hill, Sam Cooke, Sharon Jones, Otis Redding, Bill Withers, Jennifer Holiday, estou amando as coisas novas que vêm do H.E.R. e você literalmente não pode discutir o soul e não mencionar Aretha. Ela é a madrinha!
Qual música da Adele é perfeita para chorar? E da RuPaul, mas para dançar como se o mundo fosse acabar hoje?
“Someone Like You” é uma canção brilhante. Está definitivamente no topo da minha lista de “eu gostaria de ter escrito esta música”. É um conceito tão simples. Alguém que você ama passa para outra pessoa e você segue em frente também, mas não… Realmente, todos nós temos essas pessoas em nosso passado que deixaram marcas indeléveis em nossos corações e esse é o brilho desta canção. É uma relação universal. Além disso, é uma bela tomada vocal para ela. Uma das melhores de todos os tempos na minha opinião. “Sissy That Walk” é definitivamente lá em cima para mim mas eu acho que se o mundo fosse acabar eu teria que ir à velha escola Ru com SuperModel (You Better Work), porque no final da minha voz definitivamente haverá Ru vintage.
Uma última curiosidade: você conhece o trabalho de algum artista brasileiro? Se sim, quem?
Eu realmente deveria me familiarizar mais com os artistas brasileiros porque eu sei que existem alguns incríveis. O que eu tenho mais familiaridade é provavelmente Antonio Carlos Jobim. Como mencionei antes, cantei jazz por grande parte da minha carreira e você não pode ter um livro de jazz sem o Sr. Jobim. Suas canções são absolutamente lendárias. Se você tiver alguma sugestão de artistas que eu deveria conferir, por favor as envie para mim!
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